segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

As costas largas do eduquês

Ramiro Marques compara o eduquês ao economês. A analogia, apesar de se compreenderem alguns pontos comuns, é, quanto a mim, errada. O economês é um discurso que se quer opaco, construído pelo poder para se justificar através da sua aparência pseudo-científica. Aliás, o problema é que dito economês é mais fácil de se identificar do que o dito eduquês. Neste, cabem tanto as justificações absurdas de sucessivos ministérios, como alguns discursos igualmente opacos sobre a escola mas não resultantes necessariamente de um exercício de poder, como tentativas sérias de pensar e transformar a escola que não se resignam ao status quo. Não caberão certamente no mesmo saco. Nem é sério colocar o Movimento Escola Moderna (e outros) do mesmo lado de Maria de Lurdes Rodrigues.

Continua Ramiro Marques: “tal como os produtos financeiros tóxicos, o eduquês alimenta-se da fabricação fraudulenta dos resultados”. Mais uma vez, a comparação é rebuscada: os produtos financeiros tóxicos são sub-produtos do capitalismo neo-liberal e do jogo de casino em que se transformaram as bolsas de valores; o eduquês parece ser aqui entendido numa definição curta como a prática de um ministério da educação que tem como uma das imagens de marca a obsessão por embelezar as estatísticas como forma de propaganda. O que leva a reafirmar o que nos separa: esta prática de poder não pode ser confundida com outros discursos sobre educação sobre pena de se fazer tábua rasa de realidades muito diferentes.

Na crítica contra o discurso ideológico do poder deste ministério (e a sua prática "educaticida")estaremos juntos. Na cruzada contra formas de pedagogia progressistas estaremos em campos diferentes. O rótulo do “eduquês” para misturar o que não pode ser misturado tem servido também a uma cruzada conservadora que critica qualquer proposta que não se enquadre nos parâmetros da antiga escola disciplinadora e hierarquizada como sendo uma suposta “pedagogia romântica”. Na verdade, poder-se-ia contrapor que a resposta dada por alguns dos mentores desta cruzada é também uma forma de romantismo, o romantismo saudosista de uma escola de antanho.

Assim, o discurso anti-eduquês tem sido fácil, dirigindo-se directamente ao imaginário de uma escola perfeita e ausente de conflitos. Alguns sugerem mesmo que foram métodos pedagógicos que nunca foram implantados na escola portuguesa que seriam responsáveis pela crise da escola pública. Esta é um fenómeno bem mais complexo do que a rábula de que a ausência de autoridade e de conteúdos matou a escola que estava tão bem antes de lhe mexerem…

E dizer isto é andar muito longe de defender o empobrecimento a que foi votado o ensino público em Portugal. E dizer que muito do discurso anti-eduquês é conservador pedagogicamente é andar muito longe de dizer que todas as teorias pedagógicas que se dizem progressistas o sejam efectivamente. Algumas certamente serão justificações de um poder que quer manter a escola como está ou desvalorizá-la sob a capa de um falso igualitarismo, aprofundando na realidade um fosso entre os que aprendem e os que não aprendem, fosso que coincide mais ou menos com as fronteiras de classe. A escola pública que vale a pena, e nisso coincidiremos, é aquela que não desiste de ensinar com a maior qualidade.

E é de qualidade e de trabalhar junto dos que têm mais dificuldades que se fala quando se fala em ensino para o pensamento crítico e de meta-cognição. Estas são aliás realidades longe de ser práticas dominantes do poder educativo vigente em Portugal. Creio que afirmações taxativas como as que são referidas também por Marques, a partir de Carlos Fiolhais, desviam o debate. Este classifica o eduquês como “concepção instrumental da educação: aprender a aprender, aptidões metacognitivas e aptidão para o pensamento crítico. Nada disto quer dizer alguma coisa. Apenas linguagem que encobre o vazio e a ignorância.” Vazio e ignorância partilhados pela Psicologia cognitiva certamente…

A pesquisa empírica sobre critical thinking e meta-cognição tem mostrado que o conhecimento dos seus processos mentais (e dos outros) e o trabalho afincado sobre eles são instrumentos poderosos de ensino. Não são sinónimos de laxismo ou de ausência de conteúdos. Tal como a preocupação de algumas formas de ensinar na compreensão não são sinónimos de desvalorizar a ginástica da memorização e o desenvolvimento das capacidades de memória. Tal como “o respeito pelo ritmo dos alunos, aprendizagem de competências, ensino por competências” não são sinónimo de culpar o professor e desculpar o aluno.

Clarifiquemos, pois. Acredito ser possível, e eu esforço-me em Filosofia por isso, trabalhar o pensamento crítico e a meta-cognição tentando não incorrer em nenhuma das caricaturas do eduquês, trabalhando desta forma para elevar os padrões cognitivos. E acredito também ser possível trabalhar outros métodos de ensino sem cair na displicência instalada em alguma da escola pública e que essa sim é desistência em ensinar quem mais precisa. Aqui estou longe de ter certezas sobre métodos educativos e a sua eficácia...

O eduquês tem as costas largas. Escrever que “a guerra cultural aos conteúdos tem por objectivo a promoção da ignorância colectiva e, em consequência, a aceitação passiva, conformista e acrítica do status quo” não caracteriza certamente muito do que se classifica como eduquês.

Por mim, prefiro retirar a primeira da afirmação e escrever que este ministério da educação tem como objectivo a promoção da ignorância colectiva e, em consequência, a aceitação passiva, conformista e acrítica do status quo. Com esta afirmação espero contribuir para reforçar a frente necessária de resistência à delapidação da escola pública que desmascare a linguagem de pau de alguns dos cultores do poder que se entrincheiram nos corredores do M.E. e em algumas cátedras.

De resto, que siga o debate sobre como deve ser uma escola pública de qualidade sem estigmas. É dele que precisamos urgentemente. Dele e da luta que nos une. Dele, da luta que nos une e do esforço de todos os profissionais competentes com que me tenho deparado nas escolas por onde tenho passado.

Carlos Carujo, São Brás de Alportel

8 comentários:

luisladeira disse...

Oportuno reparo. Custa ver o ultramontanismo a cavalgar a onda do anti-eduquês! Bem haja!

Anónimo disse...

Embora com dúvidas em relação a alguns detalhes, no essencial concordo com este texto, porque o essencial é saber que escola queremos e como podemos alcançá-la.
Nesta polémica tentei dar um pequeno contributo em:
http://fjsantos.wordpress.com/2009/02/24/que-escola-queremos-justa-cultural-eficaz/

Ramiro Marques disse...

FJSantos!
O respeito pela diversidade cultural, cognitiva e étnica exige respostas curriculares simples e não rebuscadas. Quando me refiro ao eduquês, critico a ideologia pedagógica que faz do simples, uma coisa complicada e burocratiza tudo aquilo em que toca. Não tenho dúvidas que muita da chamada pedagogia progressista abriu caminho aos desmandos burocráticos do ME e à desfiguração da profissão docente. Nisso, assumo a divergência. Aquilo que pode matar a escola pública é a crescente burocratização curricular e pedagógica introduzida pelo eduquês e por algumas correntes pedagógicas falsamente progressistas.

Ramiro Marques disse...

Qual ultramontanismo? Quem não pensa como nós, agora é ulramontano? Sejamos sérios.

Maria José Vitorino disse...

....quem dera que a burocracia nascesse apenas de uma origem, ainda por cima um "ovo" teórico, Ramiro! Era mais fácil matar-lhe o crescimento! Essa é porém oura questão.
O texto do Carujo equaciona pontos essenciais, que creio todos pretendemos resolver - e para isso, claro, tem de se saber fazer - responder de forma simples, concordo, mas de modo certeiro!
Lançar o alvo sobre esta ou aquela corrente pedagógica pode disparar montanhas de equívocos: quantas vezes não vimos agir em nome deste ou daquele pensamento teórico gente que dele pouco aprofundou (mesmo com graus académicos, como sabemos) e, sobretudo, nada sabia, de facto, do terreno onde iria aplicar o que se propunha. Esgrimir contra teorias pode ser atraente em palco académico, mas no que toca a inflectir políticas e prática antiburocráticas, funcionará como distractor, dividindo e confundindo, e afastando, sobretudo, as atenções das medidas concretas que se sucedem nas escolas, inspiradas em cartilhas muito menos pedagógicas (seja qual for a matriz)e, evidentemente, muito mais políticas. Veja-se a coerência de medidas na administração pública, na Cultura, no ensino superior, na Ciência. Em Portugal e noutras paragens, aliás. Umbigo tem limites, mesmo muitos. Vencê-los é o que mais medo mete aos burocratas - estes adaptar-se-ão ao antieduquês como se adaptaram a outros "politicamente correctos" - apanhando a onda da superfície dos argumentos, sem mergulhar até ao fundo dos movimentos sociais, culturais, políticos, cidadãos.

rita disse...

Óptima reflexão e por isso óptimo contributo para a discussão sobre a Escola que queremos, mas "desumbiguisticamente" falando :-)

luisladeira disse...

Nada de pessoal, caro Ramiro. O ultramontana é a pedagogia do antigamente com ares de ofendida, como se fora ela mesma a encarnação do antieduquês e ninguém desse por isso.

Anónimo disse...

"EDUQUÊS "- DO ORIGINAL À FALSIFICAÇÃO
(Ou de como tanto os defensores quanto os detractores do eduquês laboram num erro: lutam, como Dom Quixote, contra uma coisa que não existe. Mas como é necessário um objecto contra o qual o seu conceito se deve medir e a sua polémica se justificar, é preciso construí-lo, mesmo que não exista.)

Carlos Fiolhais, no "blogue" De Rerum Natura (título que, pelas categorias positivistas implícitas - racionalismo idealista lógico-abstracto, a escolástica do nosso tempo -, que o norteiam, não deveria fazer-se apadrinhar pelo grande filósofo materialista Lucrécio), escreve um comentário encomiástico ao livro de E. D. Hirsch Jr., Cultural Literacy, citando um glossário, apresentado por este, dos temas maiores da dita corrente pedagógica contemporânea - aliás dividida em doutrinas que abraçam princípios muitas vezes opostos, como é o caso da pedagogia por objectivos fundada num comportamentalismo moderado (ironicamente mais próximo dos críticos do "eduquês"), e o condutismo ou construtivismo, pedagogia activa orientada - apesar dos seus limites teóricos - para o desenvolvimento integrado da personalidade, no seu carácter, sentimentos, pensamento crítico e conhecimentos, que só aparentam serem palavra vagas e mágicas porque não se prestam, como muitas vezes o positivismo exige, a meras definições categoriais mas designam aspectos dum processo à vez analítico e sintético - e sarcasticamente intitulada no nosso pequeno canto de "eduquês" (não sendo um conceito, não se refere objectivamente a nada).

Eis o glossário que, tal como foi exposto no comentário de Carlos Fiolhais, aparece descontextualizado das suas origens históricas e filosóficas, da sistemática teórica e da prática que lhe dá sentido:
«1.Concepção instrumental da educação:

"aprender a aprender",

"aptidão para o pensamento crítico",

"aptidões metacognitivas",

"aprendizagem permanente".
2.Desenvolvimentalismo romântico:

"aprendizagem ao ritmo dos alunos",

"escola centrada na criança",

"diferenças individuais dos alunos",

"estilos individuais de aprendizagem",

"inteligências múltiplas",

"ensinar a criança e não a matéria".
3.Pedagogia naturalista:

"construtivismo",

"aprendizagem cooperativa",

"aprendizagem por descoberta",

"aprendizagem holística",

"método de projecto",

"aprendizagem temática".
4.Antipatia ao ensino de conteúdos:

"os factos não contam tanto como a compreensão",

"os factos ficam desactualizados",

"menos é mais",

"aprendizagem para a compreensão".»

Carlos Fiolhais (de resto um cientista que respeito com toda a minha humildade dentro da área científica que domina como poucos, a física) sustenta, por exemplo - sendo esta uma tese central do chamado "eduquês" -, que "aprender a aprender" «é, em geral, apenas um jogo de palavras que inebria quem as profere. [...] Nesta concepção educativa, interessa mais o instrumento - a cana de pesca - do que propriamente o peixe. Quem diz isso é capaz de ficar horas perdidas sem pescar nada, não se importando nada com isso. De resto, que diz isso parte de um erro: que se pode separar o conhecimento factual da atitude para o adquirir. Como se poderão transmitir atitudes em abstracto sem objectos que as exijam?»

Totalmente de acordo com a última frase. Mas não estará Carlos Fiolhais a interpretar a expressão "aprender a aprender" distorcendo-lhe o sentido através da sua descontextualização das teorias e das práticas de ensino-aprendizagem que a tomam como lema, claro que não por má-fé mas por desconhecimento destas? Não estará, pelo menos, a ignorar a seriedade dos problemas que levanta ocultada pelos documentos e pelas práticas dos que, pelo contrário, a usam seja de maneira preguiçosa seja precisamente por má-fé e oportunismo político, estatístico e populista, sendo que este sim é um dos obstáculos principais - junto com a concepção pragmática, instrumental, operativa do saber - à educação que devemos ter?

Senão vejamos. A "escola nova", na sua recepção mais primária mas com má-fé nas altas instâncias do poder educativo, de origem romântica mas instrumentalizada nas últimas décadas para a formação de jovens de carácter cegamente competitivo e com uma atitude utilitária para com o conhecimento e a realidade humana e natural - ou seja, para a educação dos jovens no empreendedorismo focado na acumulação de capital, na concorrência brutal entre empresas sem misericórdia para com os trabalhadores, portanto também associado à criatividade que isso impõe (quem não quer ter um telemóvel "touch screen", que dá mais sensualidade à comunicação e sentido à vida?), assim como à cobiça, à vaidade, ao consumo desenfreado necessário à manutenção deste sistema económico -, a "escola nova", dizia, é ideologicamente pedocêntrica (os direitos do homem estendem-se aos da criança simultaneamente à medida que se vai cumprindo a ética formal burguesa, universalizante 'a priori', e na medida em que se vai tornando um ser de consumo imprescindível para a acumulação capitalista), construindo-se a partir da noção de aprendizagem, subordinando a mundividência dos adultos à estrutura cognitiva, expectativas e motivações dos alunos, sem compreender - ou fazendo crer que o desconhece - que a estrutura cognitiva não se desenvolve por geração espontânea nem que as motivações das crianças e adolescentes são inatas mas constituem condutas mobilizadas pelos interesses do mundo adulto que as rodeia. É que até os jogos infantis foram de invenção adulta.
Os traços mais característicos da chamada "escola nova" é - abstraindo de tudo o que distingue as diversas escolas "novas" -: - horror ao método expositivo, considerado como violência mental, pois pretende impor o universo cognitivo e afectivo do professor ao universo incomensurável (melhor dizendo, aberto às sempre novas solicitações concorrenciais da sociedade civil) do aluno; - a escola deve ter a missão de formar personalidades (diga-se, carácteres competitivamente agressivos, embora civicamente respeitadores, porque é do interesse de todos que a sociedade pelo menos viva numa harmonia formal, de resto essencial) e não exclusivamente mentes.
A "escola nova" basear-se-á pois, num modelo de não-directividade, valorizando a eficácia, o êxito, a realização, numa perspectiva de criatividade associada ao lucro económico empresarial, ao sucesso militar, ao poder político, às artes, domesticadas pela sua institucionalização como objectos de prestígio, conduzindo a uma sociedade de estatutos sociais discriminados na forma duma méritocracia, que fez grande parte do sucesso da nação norte-americana, e a miséria de muitas outras.
Porém, o próprio modelo tradicional, directivo, magistral, sob a capa da racionalidade, já visava sobretudo objectivos pragmáticos, promovendo também a ideologia do sucesso.
Só que a escola magistral já não se aplica ao nosso tempo (parece indicá-lo o processo de Bolonha), para o qual não interessa saber muito - o porquê, o fundamento, o enquadramento sintético - mas saber onde ir buscá-lo e saber operacionalizá-lo especializadamente nos objectivos reprodutivo e criativo-concorrenciais - o objectivo competitivo e o como se pode alcançá-lo.
Muito mais se poderia dizer sobre a nova "escola nova", tão apreciada pelos actuais poderes políticos e económicos. Não podendo desenvolver igualmente todos os tópicos correlatos e associados, procurarei esclarecer então o sentido histórico-filosófico e o verdadeiro significado da expressão "aprender a aprender", injustamente maltratada quer pelos críticos quer pelos adeptos institucionais do "eduquês".
Ela tem raízes inimaginavelmente antigas, socráticas e isocráticas, mas podemos começar com o grande filósofo alemão Immanuel Kant e com a sua "Informação acerca da orientação de cursos no semestre de Inverno de 1765-66", que incidiu sobre dois tópicos: reflexão sobre a pedagogia em geral e reflexão sobre a didáctica da Filosofia.
O seu texto, como não podia deixar de ser, representa uma revolução copernicana na pedagogia, fornecendo as bases filosóficas para uma escola nova, que nada tem, como veremos, da caricatura a que actualmente foi reduzida: o ensino-aprendizagem não deve girar em torno de saberes já constituídos e dogmáticos mas são os saberes que devem girar à volta do homem, como produtos das suas faculdades e portanto, no reconhecimento tanto do carácter determinante da actividade cognoscitiva do indivíduo como da ambição sistemática, necessária embora muitas vezes mal fundada, da razão humana, saberes susceptíveis de um trabalho de revisão crítica pelo esforço de assimilação prática, ética, estética e intelectual da experiência e da experimentação a que todo o ser humano pode sujeitar as coisas a fim de torná-las seus objectos. Assim, saber fazer uso do entendimento é para Kant, como escreveu em "O que são as Luzes", ousá-lo contra todas as formas de tirania intelectual e moral, seja ela mundana seja dita transcendente.
A pedagogia de Kant não pode pois ser ignorada, por mais defeitos que presentemente se lhe possa apontar.
No que respeita a uma teoria geral da educação, Kant inscreve-se no contexto da pedagogia do século XVIII. É influenciado por Rousseau e sobretudo por Basedow, que introduz o jogo, o trabalho manual e a educação física no currículo escolar. Kant denuncia a posição paradigmática da pedagogia do século XVIII, que é a da ideia de que o estudo é necessariamente um esforço violento imposto, centrado no ensino ignorando as particularidades do processo de desenvolvimento infantil.
Todavia Kant também critica a Basedow um excessivo sensorialismo e emotivismo, assim como a demasiada importância conferida à ludicidade. O projecto kantiano valoriza a disciplina e o respeito pela ordem escolar, na medida em que ela consiste num instrumento de orientação dos alunos para o desenvolvimento sistemático, metódico, das suas aptidões e conhecimentos, considerando igualmente que as recompensas (behavioristas, diríamos agora), supostamente motivos básicos da acção numa perspectiva hedonista, tendem a mercantilizar a educação, no seu próprio seio, pervertendo o seu sentido e valor.
Na verdade, uma vez que a educação consiste numa transformação não-natural da criança e do adolescente, exigindo a mobilização da noção de dever, qualquer progresso - mesmo tendo que ser produto da actividade construtiva do aluno - obrigará a um esforço garantido pela disciplina e pelo respeito perante as regras pedagógicas instituídas.
Aliás, disciplina, esforço e espontaneidade na aprendizagem não são termos contraditórios, antes pelo contrário. Para Kant, a educação é o meio pelo qual o homem adquire a sua humanidade e, posto que ela sirva para o homem adquirir todas as suas virtualidades, deve torná-las actuais, realizadas. Ora, a realização de qualquer mudança obriga a um esforço, para o qual a ausência de inclinação natural, espontânea, para o conhecimento - ao invés do afirmado por Aristóteles -, se torna necessária a disciplina.
Kant preconiza um esquema progressivo na formação integral do homem, esquema que segue a génese do próprio conhecimento (a pedagogia não é mais do que a doutrina dos processos práticos de aquisição do conhecimento junta a uma ética e a um projecto), com as seguintes etapas: intuição, conceitos do entendimento, integração dos conceitos empíricos nos seus fundamentos, constituição da ciência mediante o encadeamento bem fundamentado dos juízos.
Há portanto, no projecto educativo da escola nova de Kant, um plano prévio e estratégico de estudos que não se coaduna 'a priori' de maneira harmoniosa com as inclinações espontâneas dos alunos e com os seus interesses imediatos, dispersos e incoerentes.
A alteração da ordem dos estratos do conhecimento, assim como a prevalência do ludismo, privilegiando a subjectividade na relação com o objecto de aprendizagem, no processo pedagógico leva a um pseudo-saber, porque o que se aprenderá não poderá estar fundamentado numa totalidade cognoscitiva. Em suma, aprender-se-ão, no máximo, juízos e conceitos que não estão ligados a uma totalidade integradora, perdendo assim a sua base de significação.
Ao passar ao segundo tópico na sua "Informação de orientação de cursos", Kant esclarece finalmente o que entende por aquilo que actualmente se designa por "aprender a aprender". Nada mais do que "aprender a pensar". E o comprazimento espasmódico com o aparente paradoxo dissipa-se.
O que se aplica à Filosofia aplica-se a qualquer disciplina acerca dum saber arquitectonicamente constituído.
Toda a disciplina escolar deste tipo, encarada no seu conteúdo como sistemática de um saber prévio, é pois um sistema de conceitos elaborados dedutivamente. Mas qualquer ciência - permitimo-nos generalizar o que Kant diz da Filosofia - tem que ser tomada, no âmbito da actividade escolar, ou de aprendizagem, como matéria para nela se exercer o pensar autónomo.
Isto quer dizer também que, por exemplo, sem Filosofia escolar, sem ensino sistemático da Filosofia, não pode haver atitude filosófica.
Com isto rebate-se, confirmando na sua verdade, a objecção de Carlos Fiolhais a respeito da caricatura real da "nova escola", de que não se podem transmitir atitudes, ou disposições e métodos, em abstracto sem objectos que as exijam. A organização mental, a problematização, a crítica implicam conhecimentos seguros sobre os quais se possa raciocinar; mas, inversa e simultaneamente, o desenvolvimento do raciocínio é uma condição necessária para a aquisição de novos conhecimentos. As operações interiorizadas pela experiência dos objectos constituem a base formal da determinações de novos factos. Parafraseando Kant, juízos sem fenómenos são vazios; fenómenos sem juízos são cegos.
Mas Kant diz mais: não são apenas os objectos que exigem as atitudes do sujeito perante eles - caso em que recairíamos numa passividade essencial do sujeito a respeito do objecto, como sucede no empirismo e no positivismo -: é o sujeito, para usar termos piagetianos, na sua actividade originariamente vital, e simultaneamente social, que assimila e acomoda os objectos nas suas operações cognitivas.
Quer dizer, se há conhecimentos há atitude. Mas para haver atitude, é preciso "aprender a aprender" ou a pensar, quer dizer a determinar factos na experiência e a ter um distanciamento crítico perante os procedimentos mentais e as crenças.
Não se aprende a aprender a aprendizagem - o que parece ser a interpretação que muitos pedagogos actuais dão do mote "aprender a aprender" -, nem mesmo os pedagogos aprendem a aprender qualquer coisa ou a ensinar sem matéria para o fazer. Se "aprender a aprender" tem sentido é na medida em que, pelo contrário, não se trata duma actividade no vazio mas numa experiência contínua que, pouco a pouco, por generalização e reflexão, destaca do complexo total de cada uma das aprendizagens singulares os procedimentos formais de conhecimento, de análise, síntese, indução simples ou probabilísta, dedução, analogia, etc..
"Aprender a aprender" é, em suma, o processo progressivamente generalizante e reflexivo de conhecimento de matérias visadas pelo sujeito, portanto ao mesmo tempo orientado para a abstracção e generalização do método de aprendizagem dessas mesmas matérias.
"Aprender a aprender" é adquirir ou, como se queira, tomar consciência de métodos, na prática duma aprendizagem concreta. E o método, criticamente reflectido, é a conduta do sujeito livre perante o mundo que o rodeia.
Assim, ao mesmo tempo que descobre o valor alimentar do peixe, apercebe-se da dificuldade de o apanhar com mãos nuas e acaba por ter de construir uma ferramenta (a cana) e um método (a técnica de pesca à linha). Está, pois, justificado o provébio chinês: "Não lhe dês o peixe mas ensina-o a pescar".
Escreve Kant a respeito da tarefa do aluno: «Em poucas palavras, ele não deve aprender pensamentos mas aprender a pensar; não se deve levá-lo mas guiá-lo, se se pretende que no futuro ele seja capaz de caminhar por si mesmo.»
«Ousa pensar por ti mesmo.», escreveu Kant em "O que são as Luzes".


Publicada por Pedro Mota em 15:20 0 comentários Hiperligações para esta mensagem