Na Câmara Municipal do Porto, o presidente não permite que os casais que têm filhos os registem nos serviços da câmara como parte do agregado familiar. É a ocultação das crianças.
Não sei dizer quantos países existem por dentro de um país mas são certamente muitos. Há o país dos conformados e o país dos persistentes, há a ocidente um país dos que rasgam o olhar pelos horizontes das marés e a oriente o país dos que adormecem e acordam no centro do cerco doce criado pelas montanhas envolventes. Há o país dos que contam os dias para esticar o tempo até ao próximo ordenado e o país dos que contam as horas até à próxima abertura do mercado de valores. Seria uma longa lista, esta dos países por dentro do país.
No país que fica mais ao norte está esta cidade, o Porto, onde temos orgulho em trocar os "v"s pelos "b"s e onde às crianças chamar "mãe" parece coisa pouca. Entendem por isso prolongar "mãe" para "mãenhe" já que às vezes as palavras oferecem vogais que são pequenas demais para dizer tudo o que existe por dentro delas. Tal como no país também na cidade existem cidades por dentro da cidade.
Os bairros mais pobres da cidade são como micro-cidades dentro da cidade. A pobreza é a regra dominante, seja ela feita de salário mínimo ou de rendimento social. Ela cerca, coloca um estigma, cerceia a liberdade de desenhar ambições e projectos. Dentro do bairro construído com a argamassa da história da transformação da cidade, vive-se a linha da frente do agravamento do desemprego.
Estão ali as pessoas que encontram maior dificuldade em conseguir um emprego. No supermercado, na padaria, na oficina, no cabeleireiro, na creche, na gráfica, em todo o lado, a porta está fechada. Só tem a quarta classe? Pois …não, não há nada. Ah, mora no Bairro do Lagarteiro? Pois… não, não temos nenhuma vaga. Portas fechadas por todo o lado. Eles e elas querem trabalhar: limpezas, cargas, construção, reparações, costura, seja o que for. E nada.
No bairro tudo é dificuldade. Na escola onde a modernidade de José Sócrates colocou professores de Inglês e de Música a trabalhar sem contrato, a recibo verde, a ganhar menos que o salário mínimo em cada mês, as crianças são recebidas como todas as crianças. Mas na escola não sabem que estas são "crianças – sombra". Para a câmara elas não existem, não moram em lado nenhum porque a câmara se recusa a reconhecê-las como suas.
Estas são as não-crianças do bairro. Enquanto os pais e as mães são publicamente acusados pela direita xenófoba de ser "preguiçosos", de não querer trabalhar, de se limitarem a sobreviver com os duzentos euros do rendimento social. Enquanto percorrem a via sacra do centro de emprego, das empresas de trabalho temporário, deixam o nome, o número de contacto e ficam à espera de um milagre que os redima desta não existência. Enquanto isso, as crianças crescem como uma sombra. São mas não são.
Elas riem e brincam como todas as crianças, correm e andam de bicicleta, vão à escola e fogem para ir jogar à bola, espantam-se com o mundo à sua volta e estão a aprender a pior de todas as lições. Que não existem para a câmara municipal, que é quem manda no bairro, na casa, no pai e na mãe.
Contrariar a não-vida dos pais e das mães e a não-vida das crianças é uma exigência elementar. Esta negação da existência é exactamente a mesma que a negação da existência de professores de Inglês e de Música que são professores mas não são. A modernidade não se faz de inexistências, faz-se do conhecimento das dificuldades e do esforço de todos por amor de todos os outros. Faz-se de inconformismo com a pobreza e o abandono. Faz-se da atenção ao que acontece ao nosso lado e de verdade. Faz-se de exigir que todos, mulheres e crianças, professores e alunos, saiam da sombra e sejam gente inteira.
Crónica de Alda Macedo, em Escola Informação
Não sei dizer quantos países existem por dentro de um país mas são certamente muitos. Há o país dos conformados e o país dos persistentes, há a ocidente um país dos que rasgam o olhar pelos horizontes das marés e a oriente o país dos que adormecem e acordam no centro do cerco doce criado pelas montanhas envolventes. Há o país dos que contam os dias para esticar o tempo até ao próximo ordenado e o país dos que contam as horas até à próxima abertura do mercado de valores. Seria uma longa lista, esta dos países por dentro do país.
No país que fica mais ao norte está esta cidade, o Porto, onde temos orgulho em trocar os "v"s pelos "b"s e onde às crianças chamar "mãe" parece coisa pouca. Entendem por isso prolongar "mãe" para "mãenhe" já que às vezes as palavras oferecem vogais que são pequenas demais para dizer tudo o que existe por dentro delas. Tal como no país também na cidade existem cidades por dentro da cidade.
Os bairros mais pobres da cidade são como micro-cidades dentro da cidade. A pobreza é a regra dominante, seja ela feita de salário mínimo ou de rendimento social. Ela cerca, coloca um estigma, cerceia a liberdade de desenhar ambições e projectos. Dentro do bairro construído com a argamassa da história da transformação da cidade, vive-se a linha da frente do agravamento do desemprego.
Estão ali as pessoas que encontram maior dificuldade em conseguir um emprego. No supermercado, na padaria, na oficina, no cabeleireiro, na creche, na gráfica, em todo o lado, a porta está fechada. Só tem a quarta classe? Pois …não, não há nada. Ah, mora no Bairro do Lagarteiro? Pois… não, não temos nenhuma vaga. Portas fechadas por todo o lado. Eles e elas querem trabalhar: limpezas, cargas, construção, reparações, costura, seja o que for. E nada.
No bairro tudo é dificuldade. Na escola onde a modernidade de José Sócrates colocou professores de Inglês e de Música a trabalhar sem contrato, a recibo verde, a ganhar menos que o salário mínimo em cada mês, as crianças são recebidas como todas as crianças. Mas na escola não sabem que estas são "crianças – sombra". Para a câmara elas não existem, não moram em lado nenhum porque a câmara se recusa a reconhecê-las como suas.
Estas são as não-crianças do bairro. Enquanto os pais e as mães são publicamente acusados pela direita xenófoba de ser "preguiçosos", de não querer trabalhar, de se limitarem a sobreviver com os duzentos euros do rendimento social. Enquanto percorrem a via sacra do centro de emprego, das empresas de trabalho temporário, deixam o nome, o número de contacto e ficam à espera de um milagre que os redima desta não existência. Enquanto isso, as crianças crescem como uma sombra. São mas não são.
Elas riem e brincam como todas as crianças, correm e andam de bicicleta, vão à escola e fogem para ir jogar à bola, espantam-se com o mundo à sua volta e estão a aprender a pior de todas as lições. Que não existem para a câmara municipal, que é quem manda no bairro, na casa, no pai e na mãe.
Contrariar a não-vida dos pais e das mães e a não-vida das crianças é uma exigência elementar. Esta negação da existência é exactamente a mesma que a negação da existência de professores de Inglês e de Música que são professores mas não são. A modernidade não se faz de inexistências, faz-se do conhecimento das dificuldades e do esforço de todos por amor de todos os outros. Faz-se de inconformismo com a pobreza e o abandono. Faz-se da atenção ao que acontece ao nosso lado e de verdade. Faz-se de exigir que todos, mulheres e crianças, professores e alunos, saiam da sombra e sejam gente inteira.
Crónica de Alda Macedo, em Escola Informação
2 comentários:
Crónica com objectivos meramente partidários. É esta a atitude da esquerda caviar. Pena que assim seja e que este assunto seja tratado desta forma, que, afinal, é tão igual e não apenas semelhante à do PS.
"Pois é..."II
...então, objectivos meramente não partidário são o quê? - a atitude "cherne" que vem rapinando, extorquindo a melhor pescaria...?
Enviar um comentário