quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Acordar depois do “Acordo”


O “acordo” assinado entre o Ministério da Educação e os sindicatos traduz uma derrota inequívoca das políticas de Sócrates. Só que o maior erro dos professores seria encará-lo como uma anestesia, inibindo a continuação de uma luta que tem mostrado valer a pena.

Na era da prioridade ao défice e às políticas de austeridade – designações pomposas que o neoliberalismo descobriu para disfarçar os cortes sociais e o desinvestimento nos serviços públicos – poucos apostariam que o governo fosse ceder no osso das suas políticas. Mas foi a isso que foi obrigado por uma força imensa que inundou de revolta as avenidas de Lisboa e de todo o país. Se dúvidas persistem do tamanho da derrota deste governo, o insuspeito Vital Moreira já se encarregou de as desfazer.

Em 2007, Maria de Lurdes Rodrigues foi a cara de um novo Estatuto da Carreira Docente que impedia dois terços dos professores de atingirem o topo da carreira. O Ministério das Finanças assim o impôs. Era preciso poupar, diz a cartilha. Curiosamente, esta divisão da carreira entre professores e professores titulares levou “apenas” 25 mil docentes à rua, um número muito expressivo mas bem longe do que se veio a registar depois.

Contudo, foi a insensatez do modelo de avaliação, ancorado na competição entre professores, que fez transbordar o copo. As gigantescas manifestações que se seguiram começaram por ser apenas um grito contra a burocracia. Só muito depois ganharam ambição e acertaram no osso: era preciso terminar com a divisão arbitrária da carreira em duas categorias.

A diferença entre o “memorando de entendimento” – de má memória para a maioria dos professores - e este “acordo” é que, no primeiro caso, o governo recuou apenas no acessório. Aliás, todos os famosos “simplex” que se seguiram foram areia para os olhos para esconder aquilo que Sócrates queria deixar intacto: “pronto, pronto, tomem lá uma avaliação da treta, desde que se mantenham as quotas e não tenhamos que mexer na divisão da carreira”. Ou, mais precisamente: “sejam bons ou maus professores à vontade, mas não nos abram o cofre”. Porque, desenganem-se os mais ingénuos, para o governo o problema nunca foi se os professores eram bem ou mal avaliados nem se os alunos aprendiam bem ou mal.

Desta vez, a história é diferente: o fim da maioria absoluta obrigou Sócrates a abrir o cofre, algo que só está habituado a fazer quando os pedintes são banqueiros. Agora, todos os professores voltam a poder chegar ao topo da carreira, mesmo que em condições bem piores (34 a 40 anos de serviço) do que aquelas que vigoravam antes de 2007 (27 anos de serviço).

É também verdade que não há outro sector da função pública que tenha conseguido manter este direito. Isso não significa que os professores não tenham razão, mas tão só que eles foram até agora os únicos capazes de uma resistência tão imponente contra o neoliberalismo e os seus precipitados dogmas.

Aguardará o governo oportunidade melhor para voltar à carga com a austeridade. Infelizmente, os professores contratados ou a recibo verde – muitos deles há vários anos fora da carreira mas necessários às escolas – continuam a ser o alvo preferido e silencioso. Se Sócrates não pode poupar tanto quanto desejava com os professores de carreira, resta-lhe continuar a adiar a entrada dos precários, os mais desprotegidos tanto pela tutela como pelos sindicatos.

Sublinhe-se no entanto que, se este “acordo” vale pela derrota do governo e pela vitória dos professores, está ainda muito longe de garantir uma escola pública melhor. O modelo de avaliação docente, para lá de estar sujeito à arbitrariedade das quotas nas notas mais elevadas, promove a cunha e a competição. Mais ainda, com ciclos avaliativos de dois anos, arrisca-se a fazer das escolas centros de avaliação de professores – todos se vigiam com aulas assistidas – em vez de espaços centrados nos alunos. Já para não falar no autocrático modelo de gestão, que quer fazer do director o capataz governamental em cada esquina.

O “acordo” traduz uma vitória dos professores, mas não não é um compromisso que proíbe ou inibe a continuação deste combate. Porque se a contrapartida deste “acordo” é o baixar de armas, ele vai valer muito pouco no futuro. Ao contrário do que as palavras de Mário Nogueira parecem sugerir, os professores não devem lavar as mãos da responsabilidade das próximas lutas, entregando-as aos partidos ou diluindo-as na função pública em geral. Isto aplica-se tanto aos aspectos negativos do "acordo" como às matérias sobre as quais o "acordo" não versa.

É preciso pois acordar do sono induzido pelo "acordo", e, naturalmente do cansaço de um combate que já tem mostrado que vale a pena. É preciso acordar, não apenas pela valorização da carreira docente, mas cada vez mais para lutar por uma escola diferente: uma escola que não desiste de nenhum aluno e com recursos para garantir um sucesso escolar real – e não estatístico – para todos. Essa nova escola implica grandes mudanças e, inevitavelmente, não se faz sem ir ao cofre outra vez, custe o que custar.

Miguel Reis, professor da Escola Secundária Alfredo dos Reis Silveira (Seixal)

Sem comentários: