segunda-feira, 28 de julho de 2008

Gelatina


Quando vamos para o jardim-de-infância dizem-nos: "A mãe já vem". E a mãe volta daí a sete horas. Na primária, ao fim de quatro anos, fazem-nos acreditar que sabemos fazer contas, ler e escrever, mas quando enviamos uma carta para a Ana Maria Magalhães e para a Isabel Alçada a dizer que queremos publicar um livro, elas dizem-nos que primeiro devemos praticar muito a escrita, tanto quanto um jogador de futebol que nunca falta aos treinos. Mudamos de escola.

Avançamos nos estudos. Temos um objectivo bem claro: ser finalista. Ser aluno do 9º ano, no colégio, significava ser monitor dos pequenos, fazer os trocos no bar e poder ir à FIL, à capital, descobrir a nossa vocação.

Com a descoberta da vocação vem um novo ciclo de estudos. Agora, o objectivo é chegar ao 12º ano com uma média boa. Sonha-se com a entrada na universidade: oxalá se ingresse naquela que foi a nossa primeira opção. E a faculdade traz-nos as ilusões de uma carreira vida fora. Evita-se a época de Setembro, compete-se, percebe-se que a nossa média nunca foi tão importante. Acredita-se que é uma décima a mais depois da vírgula que há-se garantir-nos emprego.

Decoramos, face à pauta, o nome inteiro dos nossos pares e rivais nem que tenham sete apelidos: Ana Catarina Paiva Pessoa Pires Ramos Pinheiro da Cunha. Voltamos a encontrar este nome, anos depois de fazer o estágio, nas listas provisórias e depois nas listas definitivas de colocação. Nesta altura, também já sabemos o nome completo de uma série de pessoas que não conhecemos nem nunca vimos. Há quem investigue um candidato dois ou três lugares acima ou abaixo de si e lhe conheça a data de nascimento, o número de anos de serviço e o grau de paixão que nutre pelo parceiro, paixão esta que será decisiva na escolha ou na exclusão do concelho da candidatura – onde o rapaz, ou a rapariga, tem casa em Odemira. Há quem conheça gravidezes de risco, filhos com síndromes feitos de nomes estrangeiros, sogros acamados ou pais definitivamente condenados e tenha, por isso, a certeza de que aquela escola no distrito de Coimbra há-de apresentar uma vaga que, se Deus quiser, há-de ser preenchida por si.

Aos 22 anos acredita-se que aos 30 se estará efectivo e que a docência é a síntese do que pode ser uma colónia de férias com uma missão em África. Aos 32 anos, ainda contratados, sabe-se que dificilmente chegaremos ao topo da carreira, coloca-se a hipótese de um dia abandonar o Ensino e acredita-se na possibilidade de uma vida paradisíaca longe de uma profissão onde cada vez mais se deixa de ensinar e se passa a preencher papéis e onde as promessas dão lugar às advertências. A única certeza que se tem é que, na cantina da nossa escola, às terças, há gelatina.
Mas ainda assim se insiste porque estamos irremediavelmente apaixonados por tudo isto… mas não sabemos.

Almerinda Pereira

Artigo publicado em Escola.Info, no site do SPGL

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