sábado, 14 de novembro de 2009

O que eu quero mesmo


Na minha escola – lá dentro! – há alunos que andam armados; há mães que vêm à escola armadas; há pais que vêm à escola armados; há polícias, armados, que fazem rusgas.

Eu não ando armada. Nem dentro, nem fora da escola.

Na minha escola, há pancadaria todos os dias. Às vezes, nas salas de aula; às vezes no recreio; às vezes ao portão. Às vezes, é tão violenta que os funcionários e professores não lhe conseguem pôr cobro e tem de vir a polícia.

Na minha escola, há alunos que chamam familiares e amigos do bairro para ajustes de contas com colegas/vizinhos. Nessas alturas, lá vêm outra vez os polícias.

Na minha escola, há roubos, ameaças violentas e agressões físicas brutais. Entretanto, há aulas.

Na minha escola, há alunos, professores e funcionários que são vítimas destas violências. Alguns alunos pensam que se conseguem defender com armas.

As crianças e jovens da minha escola já não vivem em barracas. No tempo do presidente João Soares, a Câmara Municipal acabou com as barracas em Lisboa. Agora, vivem em bairros sociais, caixotes de elevadores há muito avariados e onde, segundo os mais novos, não se pode brincar na rua porque há o perigo de apanhar um tiro (o que por acaso é verdade, que tenho um aluno que apanhou com uma bala perdida). Em casa, têm desemprego e alcoolismo. Droga, também. São mães aos 15 e avós aos 30.

Para encontrar outro mundo é preciso sair do bairro. Mas a sua vida não é fora do bairro. O lar é no bairro. A escola é no bairro. Os negócios são no bairro. De vez em quando, lá vem a polícia e leva uns tantos. Mas depois voltam. São muito novos. E assim se vão fazendo fortes. Para não soçobrar diante da mãe que leva um murro do pai; da fome com que se deitam; da miséria a que, por ignorância, chamam vida. Tornam-se sobreviventes. A muitos, só resta aterrorizar para não viver em terror.

Mas o que eu quero mesmo é continuar a acreditar que, se as turmas tivesses metade dos alunos, até ao que tem a vida mais difícil eu conseguia dar um pouco de esperança; não quero ficar aliviada quando os da vida mais difícil abandonam a escola e deixam de causar problemas.

O que eu quero mesmo é continuar a acreditar na solidariedade e justiça social; não quero ser tentada a pensar ser culpa do rendimento mínimo a disponibilidade excessiva das famílias desordeiras que invadem a escola.

O que eu quero mesmo é continuar a acreditar que é possível fazer realojamentos com respeito pelas pessoas; não quero fingir acreditar que os problemas se resolvem desde que os ciganos, os PALOPS de 2ª e 3ª gerações e todos os mais pobres, sejam mantidos à distância, lá bem longe, onde não se cruzem com o resto de Lisboa.

A minha escola já não é minha. Aquela que sonho, em que acredito, que quero, não é esta.

E vou continuar a ir desarmada para a escola.

Isabel L. (prof. da EB 2.3 D. José I, em Lisboa)

3 comentários:

FQ"inquieta" disse...

Fantástico, Isabel! Bem (re)vinda aos "mepianos", fazes falta...
Um abraço
fq

Helena disse...

O que eu quero mesmo é o mesmo que tu.
Obrigada por o teres dito.

Movimento Escola Pública disse...

Muito interessante. Gostei muito de ler. Bem vinda.
Silvana