O regresso à escola de Helena Matos, no Público, faz-se através de uma costumeira crónica liberal, quase canónica. Utiliza como mote uma portaria de 1974, sobre a fixação de um preço máximo para a bolacha maria por razões sociais. Atrás deste exemplo, apresentam-se três motivos habituais do liberalismo: a sobre-regulamentação estatal contra a liberdade do mercado (com o exemplo anedótico colado), a oposição às medidas de apoio aos mais pobres e a irrelevância de muitas destas medidas.
A lógica da bolacha soma depois dois exemplos díspares a este quadro. Em primeiro lugar, a legislação sobre o aborto e a eutanásia que o governo do estado espanhol se “entretém”, nas palavras da autora, a fazer. Parece caricato colocar ao mesmo nível de análise a bolacha maria e o aborto mas é mesmo isso que a cronista faz. Sem qualquer ligação lógica explícita: aqui não há irrelevância, a não ser que se meça toda vida com os olhos da crise financeira; não se pode falar em sobre-regulamentação estatal porque tanto as leis proíbam o aborto e a eutanásia como as que o permitam são regulamentos estatais sobre a vida particular (e veja-se de que ponto de vista se vir, no caso da proibição da eutanásia por exemplo, trata-se sempre de um regulamento de estado proibir ou não alguém de exercer a sua vontade sobre a sua vida); aqui nem sequer existe a justificação social. A lógica da bolacha parece recheada de um amargo preconceito contra o “progressismo”. O liberalismo do mercado vive muitas vezes em união de facto com o conservadorismo moral.
Em segundo lugar, os apoios escolares do estado aos “que agora se chamam carenciados”. Aqui o problema não é a ligação forçada. É mesmo o conteúdo. Aposta-se na generalização abusiva da ideia de que o que é pago é que é valorizado. Se quisermos replicar o exemplo da bolacha com um contra-exemplo absurdo poderíamos afirmar: no caso do sexo, a maior parte das pessoas valorizam mais o sexo não pago do que o pago. Isto para dizer simplesmente que obviamente nem tudo o que é pago é mais valorizado do que o que não é pago.
Segue-se a suspeita (“seria interessante, por exemplo, avaliar a meio do ano escolar, o estado de conservação e utilização de muitos destes livros e material”) também baseada na generalização abusiva. No fundo, o mesmo argumento que se pode encontrar sobre o rendimento social de inserção ou sobre o subsídio de desemprego como subsídios à preguiça, com os mesmos intuitos: virar o “contribuinte” contra o pobre, que seria culpado de lhe roubar os seus impostos.
Faltaria ainda o corolário da cartilha liberal: “a livre escolha da escola”, ou seja, noutros termos, a destruição da escola pública, usando o pretexto do combate a um suposto monopólio de um negócio como desculpa para exigir o financiamento público dos negócios privados. Uma receita curiosa de liberalismo que vive contra o estado mas pede alvíssaras para algo mais do que bolachas.
Carlos Carujo, São Brás de Alportel
(enviado para as Cartas do Jornal Público)
quarta-feira, 10 de setembro de 2008
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