quinta-feira, 29 de maio de 2008

Até onde exigir, até onde nos ser exigido

Imagem de Barcouço (Portugal)

O que pode fazer a escola? Até onde se lhe pode exigir ?

O que pode fazer a escola?
Continuar a fazer aquilo que sempre fez, aquilo para que foi inventada, aquilo que só ela faz, aquilo que mais nenhuma instituição pode fazer, aquilo que, se a escola fechasse as suas portas, deixaria absolutamente de ser feito. Que ensine as nossas crianças, que lhes permita, em 12 anos de escolaridade gratuita e obrigatória, e, de preferência, em mais quatro ou cinco anos de formação superior, adquirir os conhecimentos fundamentais que a humanidade foi lentamente construindo, as teorias explicativas básicas necessárias à compreensão geral do mundo em que vivem e dos seres que o habitam, as suas determinações históricas, filosóficas e artísticas mais decisivas, um domínio alegre e satisfatório da sua língua, outras línguas e outras maneiras de ver o mundo, destrezas físicas e intelectuais, ginástica dos corpos e dos espíritos. Transmitir tudo isso sem impor morais, sem apontar modos de vida, sem sugerir cenários de felicidade na Terra ou fora dela (1).

Até onde se lhe pode exigir ?
Duas exigências apenas. Primeiro: Que esteja atenta às transformações no mapa dos saberes, que se dê conta dos novos territórios, das novas rotas, do alargamento dos horizontes científicos, do cruzamento das paisagens culturais, mas também dos lugares de conflito, das encruzilhadas, das dificuldades, das fronteiras em que hoje se concentram verdadeiros enxames interdisciplinares. Que, por essa razão, e na medida das suas possibilidades, actualize os seus programas, adapte e reconstrua os seus curricula, continuando a preparar tanto para as ciências como para as humanidades, procurando contrariar os efeitos perversos da especialização crescente dos saberes, que abra espaço às novas disciplinas científicas, responda aos novos deslocamentos cognitivos, que favoreça as heurísticas resultantes dos novos cruzamentos disciplinares, que se faça eco das importantes transformações civilizacionais em curso. Que, nesse sentido, prepare as nossas crianças para o domínio dos novos meios de comunicação e para a exploração da quantidade gigantesca de informação já hoje disponível dando-lhe aquilo que mais nenhuma instituição pode fornecer: uma cartografia de navegação no turbulento oceano do saber.

Segundo: Que garanta que esse acto de comunicação e construção cultural que ela tem como missão, isto é, que o ensino que só ela faz, que nada nem ninguém poderia fazer sem ela, que seja bafejado de toda a beleza possível. Que a palavra que primordialmente o constitui seja tomada de fulgor explicativo, mostrativo, demonstrativo, na sua vontade de "dar a ver", de iluminar para que o outro veja.
Revalorização também da figura do professor como aquele que re-presenta o saber, que o a-presenta, que o torna presente, que o vivifica com a sua presença. Não como repetidor mas como executante de uma sinfonia de luz, cor e inteligência.

E nós, que podemos fazer? Que nos pode ser exigido?
Continuar a acreditar que o belo é o esplendor da verdade. E comover-nos com isso.
(1)“Na escola, como queria Neil, temos que nos recusar a transmitir "religião, política ou consciência de classe”, Liberdade sem Medo, p. 105. Nas palavras de Hannah Arendt, "A função da escola é ensinar às crianças o que o mundo é e não iniciá-las na arte de viver", A Crise da Educação, p 51.


Olga Pombo (2003) O insuportável brilho da escola,

in Alain Renaut et allii, Direitos e Responsabilidades na Sociedade Educativa,
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 31-59.
(selecção, cores e destaques nossos)

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