Era uma reunião do conselho de turma que, pensávamos, não iria ser fácil. Não se pensava que fosse correr facilmente. Mas vimos depois como tudo podia ser ainda um pouco mais difícil.
Estavam presentes todos os professores, um representante dos pais, um representante dos alunos e, naquele caso, também a psicóloga da escola. A turma era complicada sobretudo porque havia uma forte interacção entre todos os alunos. Tinham vindo quase todos da escola pré-primária, depois da escola de 1º ciclo. Estavam agora no segundo ciclo e a relação entre eles era mais forte que a relação com um contexto organizacional que ainda não dominavam completamente. Afinal tinham estado juntos em 70% das suas ainda pequenas vidas.
A disciplina de História era a que apresentava maiores dificuldades. Uma grande tensão estava sempre presente na relação entre o professor e aquele grupo de alunos que tinham entre os 10 e os 12 anos; eram observadores, perspicazes, críticos e por vezes um pouco trocistas quando as coisas não corriam bem. Cheios de sentido de humor, habituados a exprimirem-se à vontade e, sobretudo, solidários e exigentes; não deixavam que as respostas que lhes dávamos fossem pouco completas e não passavam sem fazer de novo outra pergunta sempre que não estavam convencidos.
Às vezes pareciam as crianças que repetem interminavelmente o seu “mas porquê?”. E isso enervava-nos um pouco e requeria alguma paciência. Era uma turma pouco homogénea mas com uma identidade muito própria. Na aula de História, por qualquer motivo, desenhou-se uma relação de pouca empatia e os conflitos estavam sempre a aparecer.
Na reunião íamos discutir várias questões e guardámos a questão dos problemas na aula de História para o fim. Quando, depois de muitas intervenções, muitas queixas da professora, observações de alguns pais, se pretendia encerrar a reunião, o Marco levantou o dedo:
— Posso dizer uma coisa?
— Claro, disse a directora de turma que presidia à reunião.
— É que nós achamos que é verdade que somos um bocado mal comportados mas isto tem muito a ver com o stor M.
— Que queres dizer?
— É que nós também temos algumas queixas a apresentar… porque se o stor…
E, com voz calma, o Marco foi apresentando as suas razões, dizendo sempre nós (referia-se a todos os colegas da turma). Gerou-se um momento um pouco constrangedor mas escutou-se o Marco.
No final alguém chamou o Marco e lhe disse:
— Fiquei muito chocada com o que fizeste. Não esperava isso de ti.
— Mas o quê stora?...
— Falares daquela maneira na reunião, do teu professor de História…e ainda por cima diante do representante dos pais…Não esperava isso de ti, tão educado… nem parece teu, falares assim diante dos outros, diante de pessoas de fora…
— Mas eu estava ali a representar os meus colegas, tinha que dizer o que a turma me pediu para dizer… Não era o que eu tinha que fazer?
Sim, era o que o Marco tinha que fazer. Ele era o representante dos alunos, ele participava e defrontava com alguma dificuldade o terreno desconhecido de uma reunião formal, o mundo dos adultos, o olhar do próprio professor a quem os alunos questionavam algumas atitudes. Falava com frontalidade e equilíbrio, apresentava aquilo para que os colegas o tinham mandatado.
O Marco cumpria assim um dever de cidadania e reclamava o seu direito de participação. Mas não foi felicitado por isso. Deve participar, diz-se. Mas a participação pode ser um difícil exercício.
Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação
Artigo da edição de Maio do Jornal A Página da Educação
Estavam presentes todos os professores, um representante dos pais, um representante dos alunos e, naquele caso, também a psicóloga da escola. A turma era complicada sobretudo porque havia uma forte interacção entre todos os alunos. Tinham vindo quase todos da escola pré-primária, depois da escola de 1º ciclo. Estavam agora no segundo ciclo e a relação entre eles era mais forte que a relação com um contexto organizacional que ainda não dominavam completamente. Afinal tinham estado juntos em 70% das suas ainda pequenas vidas.
A disciplina de História era a que apresentava maiores dificuldades. Uma grande tensão estava sempre presente na relação entre o professor e aquele grupo de alunos que tinham entre os 10 e os 12 anos; eram observadores, perspicazes, críticos e por vezes um pouco trocistas quando as coisas não corriam bem. Cheios de sentido de humor, habituados a exprimirem-se à vontade e, sobretudo, solidários e exigentes; não deixavam que as respostas que lhes dávamos fossem pouco completas e não passavam sem fazer de novo outra pergunta sempre que não estavam convencidos.
Às vezes pareciam as crianças que repetem interminavelmente o seu “mas porquê?”. E isso enervava-nos um pouco e requeria alguma paciência. Era uma turma pouco homogénea mas com uma identidade muito própria. Na aula de História, por qualquer motivo, desenhou-se uma relação de pouca empatia e os conflitos estavam sempre a aparecer.
Na reunião íamos discutir várias questões e guardámos a questão dos problemas na aula de História para o fim. Quando, depois de muitas intervenções, muitas queixas da professora, observações de alguns pais, se pretendia encerrar a reunião, o Marco levantou o dedo:
— Posso dizer uma coisa?
— Claro, disse a directora de turma que presidia à reunião.
— É que nós achamos que é verdade que somos um bocado mal comportados mas isto tem muito a ver com o stor M.
— Que queres dizer?
— É que nós também temos algumas queixas a apresentar… porque se o stor…
E, com voz calma, o Marco foi apresentando as suas razões, dizendo sempre nós (referia-se a todos os colegas da turma). Gerou-se um momento um pouco constrangedor mas escutou-se o Marco.
No final alguém chamou o Marco e lhe disse:
— Fiquei muito chocada com o que fizeste. Não esperava isso de ti.
— Mas o quê stora?...
— Falares daquela maneira na reunião, do teu professor de História…e ainda por cima diante do representante dos pais…Não esperava isso de ti, tão educado… nem parece teu, falares assim diante dos outros, diante de pessoas de fora…
— Mas eu estava ali a representar os meus colegas, tinha que dizer o que a turma me pediu para dizer… Não era o que eu tinha que fazer?
Sim, era o que o Marco tinha que fazer. Ele era o representante dos alunos, ele participava e defrontava com alguma dificuldade o terreno desconhecido de uma reunião formal, o mundo dos adultos, o olhar do próprio professor a quem os alunos questionavam algumas atitudes. Falava com frontalidade e equilíbrio, apresentava aquilo para que os colegas o tinham mandatado.
O Marco cumpria assim um dever de cidadania e reclamava o seu direito de participação. Mas não foi felicitado por isso. Deve participar, diz-se. Mas a participação pode ser um difícil exercício.
Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação
Artigo da edição de Maio do Jornal A Página da Educação
1 comentário:
Abrir a sociedade, a nossa prática e as nossas cabeças é o grande desafio da democraria. Saber viver com o que não controlamos à partida, aceitar a diferença sem deixar de garantir os limites da cordialidade e do respeito mútuo. Um curriculum socialmente fundamental, e EM TODAS AS DISCIPLINAS, porque se desenvolve e apolica não "com aulas" mas em todas as horas, com ou sem aula nessas horas. Nos comportamentos, nas atitudes, as certas e as menos certas (como esta chamada de atenção ao Marco, que certamente lhe ensinou imenso sobre o que realmente pensam e sentem os adultos sobre a participação, as reuniões, a representação, a democracia... e tudo sem manual, nem sumário!). Bom texto
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