1. Em redor, por detrás, antes e depois dos eventos e do espectáculo, existe o contexto. Cada vez estamos mais deficitários de contexto. Vai sendo tempo de furar a espuma dos dias e começar a entender a rapariga do telemóvel, ultrapassando o acontecimento e as imagens que se tornaram icónicas e que já não nos pertencem, circulando loucas na hiperrealidade do ciberespaço, entrando no imaginário colectivo e criando efeitos na realidade. A rapariga do telemóvel não é uma criminosa. É uma jovem no limiar do século XXI e não apenas uma estudante. É alguém moldado por pressões socializadoras múltiplas e contraditórias, em que a família e a escola perderam grande parte do seu poder normativo e de enquadramento.
Incapazes, os media, os magistrados e alguns sindicatos, de perceberem que nada se resolve com a punição criminal ou com mais da mesma escola (a tal que está em crise). Mas sem dúvida que algo poderia mudar se, por exemplo, as escolas públicas, os professores e os sindicatos se comprometessem a combater todas as práticas de recrutamento selectivo de jovens, as tais que escolhem os discentes de origens sociais favorecidas, de molde a obterem melhores resultados, capazes, assim, de catapultarem as escolas no famigerado ranking. Ou a segregação em turmas, concentrando, tantas vezes, os alunos com piores classificações, insucesso e vulneráveis ao abandono.
2. SIC-notícias: puxar o sangue. Reportagem sobre os horrores nas escolas públicas e as virtudes da serena e firme harmonia das privadas onde os telemóveis não entram. A seguir, um debate a quatro. Uma senhora historiadora, reaccionaríssima, atribuía o fenómeno ora à falta de educação dos pais dos alunos da geração da massificação, ora à psicanálise e às ciências sociais que desresponsabilizaram o indivíduo por se preocuparem com as causas estruturais. Afinal, a escumalha invadiu as escolas e por isso exigia a expulsão e um ano de trabalho comunitário para a aluna-criminosa. Outra senhora, jornalista e neoconservadora orgânica, um pouco mais polida, lamentava a ausência de um contínuo que tirasse o telemóvel à aprendiza, pois os funcionares menores (nos liceus de Salazar havia sempre a salita do «pessoal menor»…) devem servir como exército ao serviço dos senhores professores, espécie de casta intocável que jamais se pode permitir ao mais leve contacto físico com os alunos. Chamava a atenção, ainda, para o respeito que existia nas escolas dos antigos países «comunistas». Que saudades da pura força. Ambas eram traídas pela paralinguagem: o timbre, a dicção, o sotaque de classe de senhoras burguesas com formação intelectual. Um terceiro, jornalista de «topo», em recaídas de riso
ligeiramente boçais, falava da autoridade e da falta que fazem os campos de futebol para sugar as energias destrutivas dos alunos. Um quarto interveniente, Rui Tavares, jogava à defesa.
O Senhor Procurador-Geral da República, entretanto, perdeu a cabeça e accionou uma intervenção de direito criminal sobre a aluna, envolvendo medidas cautelares e uma eventual condenação pelo tribunal de menores. Mário Nogueira, da FENPROF, perdeu não menos cabeça ao aplaudir o primeiro. Quero dizer a todos estes senhores e senhoras que as classes perigosas estão nas escolas, nos bairros e nas cidades para ficar. Quero dizer-lhes que todos os dias aumentam os seus caudais. Quero afiançar-lhes que as explosões sem sentido, raivosas, inconsequentes e barulhentas, eclodirão um pouco por toda a parte. Quero garantir- lhes que o espaço público está a ser destruído e que, um dia, só lhes restará viver em estado de sítio permanente, em bolhas militarizadas de apartheid urbano e vertigem securitária. Quero sossegá-las porque não será a revolução. E construir-se-ão muros e paisagens blindadas. E haverá prisões em cada freguesia. E hordas de adolescentes perecerão em campos de concentração, depois de gritarem mil e um palavrões horrendos. Ou então…
Incapazes, os media, os magistrados e alguns sindicatos, de perceberem que nada se resolve com a punição criminal ou com mais da mesma escola (a tal que está em crise). Mas sem dúvida que algo poderia mudar se, por exemplo, as escolas públicas, os professores e os sindicatos se comprometessem a combater todas as práticas de recrutamento selectivo de jovens, as tais que escolhem os discentes de origens sociais favorecidas, de molde a obterem melhores resultados, capazes, assim, de catapultarem as escolas no famigerado ranking. Ou a segregação em turmas, concentrando, tantas vezes, os alunos com piores classificações, insucesso e vulneráveis ao abandono.
2. SIC-notícias: puxar o sangue. Reportagem sobre os horrores nas escolas públicas e as virtudes da serena e firme harmonia das privadas onde os telemóveis não entram. A seguir, um debate a quatro. Uma senhora historiadora, reaccionaríssima, atribuía o fenómeno ora à falta de educação dos pais dos alunos da geração da massificação, ora à psicanálise e às ciências sociais que desresponsabilizaram o indivíduo por se preocuparem com as causas estruturais. Afinal, a escumalha invadiu as escolas e por isso exigia a expulsão e um ano de trabalho comunitário para a aluna-criminosa. Outra senhora, jornalista e neoconservadora orgânica, um pouco mais polida, lamentava a ausência de um contínuo que tirasse o telemóvel à aprendiza, pois os funcionares menores (nos liceus de Salazar havia sempre a salita do «pessoal menor»…) devem servir como exército ao serviço dos senhores professores, espécie de casta intocável que jamais se pode permitir ao mais leve contacto físico com os alunos. Chamava a atenção, ainda, para o respeito que existia nas escolas dos antigos países «comunistas». Que saudades da pura força. Ambas eram traídas pela paralinguagem: o timbre, a dicção, o sotaque de classe de senhoras burguesas com formação intelectual. Um terceiro, jornalista de «topo», em recaídas de riso
ligeiramente boçais, falava da autoridade e da falta que fazem os campos de futebol para sugar as energias destrutivas dos alunos. Um quarto interveniente, Rui Tavares, jogava à defesa.
O Senhor Procurador-Geral da República, entretanto, perdeu a cabeça e accionou uma intervenção de direito criminal sobre a aluna, envolvendo medidas cautelares e uma eventual condenação pelo tribunal de menores. Mário Nogueira, da FENPROF, perdeu não menos cabeça ao aplaudir o primeiro. Quero dizer a todos estes senhores e senhoras que as classes perigosas estão nas escolas, nos bairros e nas cidades para ficar. Quero dizer-lhes que todos os dias aumentam os seus caudais. Quero afiançar-lhes que as explosões sem sentido, raivosas, inconsequentes e barulhentas, eclodirão um pouco por toda a parte. Quero garantir- lhes que o espaço público está a ser destruído e que, um dia, só lhes restará viver em estado de sítio permanente, em bolhas militarizadas de apartheid urbano e vertigem securitária. Quero sossegá-las porque não será a revolução. E construir-se-ão muros e paisagens blindadas. E haverá prisões em cada freguesia. E hordas de adolescentes perecerão em campos de concentração, depois de gritarem mil e um palavrões horrendos. Ou então…
João Teixeira Lopes
Sociólogo, Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP)
Artigo da edição de Maio do Jornal A Página da Educação
Sociólogo, Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP)
Artigo da edição de Maio do Jornal A Página da Educação
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