quinta-feira, 12 de março de 2009

Breves reflexões sobre o papel dos professores


Porque os processos educativos são sempre muito complexos, portanto difíceis de interpretar, porque se admite, actualmente, que as formas que estes processos assumem decorrem da interacção, frequentemente conflitual, de interesses vários, nem sempre explícitos, verifica-se que a interpretação que deles é feita pode ser muito diversificada. E porque se admite que esta multiplicidade de análises resulta, também, em boa parte, da perspectiva teórico-ideológica a partir da qual elas são feitas, num curto texto em que é necessário privilegiar, para além da clareza de posições, a economia de palavras, justifica-se que se comece por enunciar sem argumentar, os pressupostos teóricos de que se partiu.

E desses pressupostos pode salientar-se:

- o sistema educativo é um sub-sistema do sistema cultural ele próprio minoritário face ao poder económico e político. Assim sendo, os processos educativos que ocorrem nunca poderão ser estudados como se este tivesse autonomia de funcionamento, num quadro de estruturas políticas, económicas e culturais que o constrangem, de forma muitas vezes não explícita.

- apesar de se reconhecer a forte acção constrangedora das macro-estruturas económicas, políticas e culturais, admite-se a existência de alguma possibilidade de exercício de autonomia por parte de agentes sócio-educativos.

- num mundo que se globaliza e que, numa aparente contradição, se heterogeneiza, num mundo em que as desigualdades e as assimetrias são crescentes, em que cresce também o exercício de violências várias, fazendo a escola parte desse mundo, é de esperar que o trabalho educativo seja crescentemente mais complexo mais exigente e, simultaneamente, mais urgente.

- a escola pública, obrigatória gratuita, porque é simultaneamente, um sinal e um pilar de funcionamento de comunidades que se preocupam em oferecer a todos uma igualdade de oportunidades, terá de ser defendida por aqueles que estão empenhados na construção de uma sociedade democrática.

- a oferta generalizada de acesso que a escola pública dá, não está a significar uma oferta de sucesso a todos os que a frequentam. E dado que se verifica que probabilidade de sucesso é claramente menor nos grupos minoritários, há que reconhecer que a escola está a contribuir para um crescente desigualdade social.


Reconhece-se assim que sob a capa de uma aparente neutralidade, tal com está, e dentro dos seus limites de acção, a escola contribui para discriminar, para eliminar, para desencorajar e desinteressar muitos alunos. Estes são, predominantemente, os que provêm de populações que habitam zonas degradadas, de zonas suburbanas de meios rurais, são também os filhos de alguns emigrantes de diferentes nacionalidades e etnias, em suma os que são rotulados injustamente de "diferentes" dos alunos que a escola tradicional considera serem os alunos "normais".

Não basta pois afirmar que se defende a escola pública. É preciso que a escola pública mude e se preocupe, realmente, em não se limitar a oferecer acesso a todos, mas também em tentar favorecer a possibilidade de sucesso de todos a que a frequentam.

De quem é a responsabilidade?

De tudo o que anteriormente se afirmou decorre que se admite que muitos dos fenómenos de discriminação, de desigualdade e exclusão social que estão presentes no quotidiano escolar têm sobretudo origem em problemas sócio económicos e políticos gerais. Será portanto crucial que estes problemas de desigualdade e exclusão sejam tratados na sua origem. Mas apesar de se admitir que a resolução de fundo destes problemas transcende, geralmente, as possibilidades de acção dos sistemas educativos das escolas e dentro delas dos professores, há questões sobre as quais é urgente que, quem trabalha em educação se detenha a reflectir: e uma delas, eventualmente incómoda, poderá ser:

Estaremos dispostos a, no nosso quotidiano, contribuir para que o nosso trabalho continue a favorecer processos de discriminação e de exclusão que, é certo, têm frequentemente origem fora da escola?
ou
Estaremos empenhados em pôr "um pauzinho na engrenagem ", trabalhando de modo a que não se discriminem mais os já socialmente discriminados, não se excluam escolarmente os que pertencem a grupos que são objecto de exclusão social?

E não considerando, para já, todo um conjunto de medidas de carácter social, que deveriam ser implementados, na plena consciência de que para problemas complexos não pode haver soluções simples e únicas, e sempre com articulação com os pressupostos anteriormente referidos, poderão adiantar-se algumas questões que se consideram somente pontos de partida para reflexões futuras e que são relativas ao trabalho quotidiano dos professores.

Pensa-se assim ser importante:

- melhorar a situação de trabalho dos professores, por exemplo através de maior segurança profissional, maior autonomia e melhores condições na prática docente (tornar turmas mais pequenas, bom equipamento etc...)

- investir em currículos flexíveis que os professores possam gerir de acordo com os alunos com que trabalham, tornando possível que as aprendizagens lhes sejam significativas

- preservar e até alargar, nos currículos, a existência de zonas transversais interdisciplinares que possibilitem actividades de projecto a realizar pelos alunos e com os alunos

- estimular, através de medidas adequadas, o trabalho cooperativo dos professores

- investir na formação através de processos interessantes que lhes devolvam o protagonismo, através dos quais, para além da competência científica, os professores, por exemplo se enriqueçam em áreas da sócio-antropologia (que lhes favorecerá a capacidade de lidar com a diversidade), aumentam e consciência da politicidade da sua acção, redobrem a sua capacidade de vigilância crítica (que lhes permite descodificar diferentes significados de medidas e de práticas educativas em que estão envolvidas).

Estas (entre muitas outras) propostas poderão contribuir para que os professores tenham consciência mais clara de que são actores com um papel importante a desempenhar na sociedade e que portanto:

- não se assumam como meros executantes se tarefas que lhes são encomendadas;

- tenham consciência mais forte da politicidade de ser acção educativa, recusando-se a desenvolver um trabalho de carácter (falsamente) meritocrático;

- evitem posturas autoritárias e etnocêntricas que desrespeitem, desnecessariamente, as raízes sócio-cultural dos alunos e que os estimule a tentar alargar os seus horizontes de opções;

- trabalhem com os alunos (mais do que para os alunos) em vivências cidadãs tentando tornar-lhes significativas as actividades escolares, negociando com eles regras e cumprir, direitos a usufruir, trabalhos a realizar, estimulando-os a tomar iniciativas, a criticar, o ter o gosto por aprender.

Luiza Cortesão é professora emérita da Universidade do Porto e presidente do Instituto Paulo Freire de Portugal

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