terça-feira, 21 de abril de 2009

E as crianças, a quem pertencem?


Darwin faz-nos pensar em como viemos de tão longe e como havemos de nos encontrar muito além do horizonte da imaginação. Na reminiscência desse passado mais distante do que a memória fica-nos um vago sabor da liberdade perdida no longínquo verde da natureza e fica-nos a pergunta de como olhamos para as nossas crianças neste tempo de inocência desventrada. De quem são as crianças? Dos pais, que as protegem das intempéries como faz o pinguim-imperador dos desertos gelados ou do grupo social que colectivamente cuida das suas crias como acontece com bandos de primatas errantes nas alturas da selva?

Esta pergunta foi provocada por duas notícias que nas últimas semanas convergiram para suscitar uma mesma preocupação. Em Barqueiros soube-se de uma turma de meninos e meninas ciganos que foi separada do resto da escola para ficar num contentor justificado pelo pretexto de um projecto curricular alternativo.

Noutra coordenada do país e da vida o presidente da CONFAP, sob o pretexto das dificuldades dos pais defende a ideia de que deve poder ser possível uma escola guardar uma criança por doze horas.

Distantes uma da outra, estas duas notícias remetem para um mesmo problema. Estaremos a olhar para as crianças e os jovens como pessoas ou como objectos de arrumação fácil: crianças que exigem medidas difíceis guardam-se num contentor, crianças que são filhas de vidas difíceis guardam-se numa sala de escola?

Barqueiros é o exemplo de um acto administrativo que cobre de vergonha a Direcção Regional de Educação do Norte, é intolerável que se mascare uma prática de segregação com um pretenso projecto de discriminação positiva. Por seu lado, a escola – fábrica que o presidente da CONFAP defende corresponde à velha ideia do armazém de crianças, ensinadas, vigiadas, guardadas, alimentadas durante as doze horas do dia de modo a que os pais fiquem libertos para poderem ceder à chantagem da pressão de um código de trabalho que não respeita o direito à vida privada de nenhum trabalhador.

Um caso e outro são distintos na sua natureza mas são convergentes sobre a questão de saber como se operam os diálogos necessários entre pais, escolas, administração escolar e autarquia para podermos mudar de vida. De quem é a responsabilidade? Quem permite que as crianças sejam transformadas em estorvo em vez de serem o centro do investimento no futuro, objecto de cuidado e carinho? Como impedimos que decisões aparentemente fáceis – “escola das oito às oito” ou “projecto curricular para fazer de contas que está tudo resolvido” – transformem num inferno de sofrimento a vida daqueles que precisamos de proteger?

E ao mesmo tempo surgem outras perguntas e outros tantos problemas: Como é que se quebra a solidão da decisão de um pai que entra no trabalho às oito e sai às sete para enfrentar a batalha dos transportes, das compras de última hora, da angústia do filho que está à espera e o jantar por fazer? Como é que se ilumina o desespero de um professor que não consegue, não tem os meios para dialogar com uma criança que não fala a linguagem da escola, fala outra linguagem, de outra cultura? Como é que se dá o espaço necessário para que uma família cigana que espera pouco da escola dos outros porque que sabe – de experiência vivida – que aquela escola serve para pouco no horizonte de perspectivas que tem para si e para os seus, queira fazer da escola um lugar de crescer?

Nenhum destes problemas tem uma resposta fácil. Mas todos eles remetem para a responsabilidade em relação às crianças. Não saberemos dar nenhuma destas respostas enquanto não assumirmos que as crianças são responsabilidade de todos.

As crianças são responsabilidade de quem faz as leis do trabalho que têm que respeitar o tempo de viver e amar de quem trabalha, e portanto o tempo de usufruir do convívio com os seus filhos.

As crianças são responsabilidade dos autarcas que não podem lavar as mãos, têm que saber que todas as crianças têm que ter o direito a ir ao desporto, a tocar música na banda, a ensaiar jardinagem, a experimentar todos os escorregas e portanto é preciso que haja uma visão da escola como rampa de lançamento para o que vida tem para oferecer e isso pode ser organizado no lugar, na terra, no sítio, muito para lá das portas da escola. Conquistar o espaço e o território faz parte do crescimento, mas para isso é preciso que os autarcas se mobilizem para promover a igualdade de oportunidades.

As crianças são responsabilidade dos professores que precisam de ensinar a lição mais difícil que é a de ensinar à administração escolar que não há nenhuma receita fácil para nenhum problema. Os professores têm mostrado que têm todas as competências científicas e pedagógicas para ensinar as lições mais difíceis ao poder político e desistir não faz parte de nenhum dos seus objectivos individuais.
As crianças são responsabilidade dos pais que têm todo o direito de esperar que a escola respeite a sua cultura própria, mas também têm que ser capazes de dar, e sobretudo dar aos filhos a liberdade de ser diferentes dos próprios pais.

Cada geração precisa de ser diferente da geração anterior, e é-o de facto. Darwin demonstrou isso mesmo. Progresso precisa de uma nova geração mais crítica, mais informada, mais segura de si mesma, mais saudável, mais inteligente, mais criativa. Foi assim que chegámos do passado longínquo até agora.

Crónica de Alda Macedo em escola.info.net

1 comentário:

FQ"inquieta" disse...

Muito bem, Alda Macedo!
Bom, teres voltado ao contentor, ao caixote cigano de crianças, que os sem vergonha deste ministério da deseducação e da infâmia e seus directores, assessores e doutores da mula ruça erguem como exemplo da sua cultura de ignorantes da humanidade.
Se a gente pára, o bicho come...
Bem hajas
fq