quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Manifesto Pedagógico, em tempo de rankings...


Neste MANIFESTO PEDAGÓGICO, elaborado pela Red IRES (Investigação e Renovação Escolar) de Espanha analisa-se uma situação muito semelhante à portuguesa. Parece-nos um documento interessante para uma reflexão sobre a escola pública que temos e a que queremos, por isso o divulgamos. (tradução de Helena Dias)


NÃO É VERDADE!

As organizações e pessoas que assinam este Manifesto (docentes, mães, pais, estudantes e cidadãos em geral) estão profundamente preocupados pela difusão de convicções sobre a escola espanhola, que distorcem gravemente a realidade. Está a generalizar-se a convicção de que hoje, na escola, se ensinam poucos conteúdos, se fazem actividades irrelevantes, os níveis de exigência baixaram, os alunos e alunas são piores do que os de antes, há “muita pedagogia e pouco ensino.

Preocupa-nos particularmente a atitude de determinadas pessoas com impacto mediático (pertencentes ao campo da literatura, da universidade, da intelectualidade, etc) que divulgam estas convicções com argumentos muito pobres, às vezes mesmo insultuosos, evidenciando uma visão pouco rigorosa sobre a escola e sobre os processos que nela têm lugar. Preocupa-nos, enfim, que a educação, ao contrário de outras actividades de grande importância social como a medicina ou a justiça, seja analisada e valorizada socialmente a partir de concepções simplistas e caducas.

Por tudo isto, decidimos manifestar-nos colectivamente e tornar pública a nossa opinião, afirmando o seguinte:

Não é verdade que na escola espanhola actual predomine um modelo de ensino diferente do tradicional.

A convicção de que nos últimos tempos se pratica um ensino descafeinado e permissivo, onde não se valora o “conhecimento para toda a vida” é um mito sem fundamento.

Aliás, acontece precisamente o contrário. Apesar dos inúmeros argumentos contra a forma tradicional de ensinar, a cultura escolar dominante em Espanha continua a basear-se na transmissão directa de conteúdos desconexos e, não poucas vezes, desfasados e irrelevantes, na aprendizagem mecânica e repetitiva, na avaliação selectiva e sancionadora e no prolongamento dos horários escolares, com abundantes deveres e tarefas.

A maioria dos alunos e alunas continuam a ter grandes dificuldades em compreender o que se lhes ensina e, como sempre aconteceu, acabam a identificar o saber com a capacidade de reter informação até ao dia do exame.
(...)
O ideário psicopedagógico da legislação recente, por mais que propusesse alterações de grande interesse, nunca chegou a penetrar na maioria das salas de aula, em grande medida porque tornar a escola melhor não é uma questão de leis, mas uma mudança cultural, social e comunitária.

Não é verdade que na escola espanhola se tenham baixado os níveis de exigência.

Basta comparar os livros escolares de hoje com os de antigamente, para comprovar que cada vez se pretende ensinar mais conteúdos, com formulações mais abstractas e em idades mais precoces. Muitos pais e mães não entendem os livros escolares, que com frequência são os protagonistas das tardes familiares. Cada vez é mais difícil para os docentes chegar ao fim dos programas aprovados. Cada vez é mais pesada a carga horária dos estudantes. Cada vez há mais desistências.

A ideia de que “os níveis estão a baixar” tenta dar uma explicação fácil ao evidente fracasso da escola. Em cada um dos níveis de ensino, os docentes comprovam a debilidade do conhecimento de grande parte dos alunos.

É por isto que os estudantes fracassam, precisamente, porque o modelo de ensino transmissivo e tradicional, e não outro, não provoca neles uma aprendizagem duradoura e de qualidade. Sempre foi assim. Não entender as explicações ouvidas nas aulas, não perceber o sentido de muitos conteúdos escolares, estudar mecanicamente e apenas para os exames, esquecer rapidamente o que se aprendeu e ter que começar do zero em cada ano, são experiências partilhadas por muitas pessoas. E, no entanto, estas experiências tendem a ser esquecidas, quando se analisa o fracasso dos estudantes de hoje.

A incompatibilidade entre uma boa aprendizagem e o ensino tradicional, que se manteve até hoje, tem vindo a tornar-se mais profunda nos últimos tempos.

Muitas pessoas pensam que a entrada na escola dos filhos e filhas, de jovens anteriormente dela excluídos, dos emigrantes e dos que têm capacidades diferentes influenciou o aumento do fracasso escolar. No entanto, esta entrada, para além de demonstrar um avanço social, serviu para trazer para a luz o que até então se mostrava difuso: que o ensino tradicional não promove uma aprendizagem de qualidade na maioria dos estudantes, sejam quais forem as suas circunstâncias.

Ao mesmo tempo, um mundo globalizado, onde a informação circula pela internet, onde a comunicação se tornou virtual, onde os grandes problemas da humanidade têm natureza interdisciplinar, onde as certezas absolutas desapareceram e enfrentamos um futuro difícil, incerto e complexo, a escola continua ancorada em conteúdos e métodos do passado.

O fracasso escolar, portanto, não se explica porque os níveis de exigência tenham baixado, nem pelo facto de a escolarização se ter estendido a mais estudantes, ou a mais anos, mas antes porque o modelo educativo vigente é um modelo ultrapassado.

Não é verdade que os alunos e alunas de hoje sejam piores do que os de antes.
São diferentes, mas não piores. As crianças e jovens de hoje , bem como os de antigamente, são produto da sociedade em que vivem. Julgá-los negativamente como um todo é um exercício simplista e uma forma de ocultar a responsabilidade da sociedade adulta.

O incitamento permanente ao consumo (pense-se, como exemplo dramático, nos anúncios sobre brinquedos natalícios), a disseminação contínua da cultura do êxito, do triunfo e da superficialidade, a conversão permanente das crianças e jovens em permanentes objectos do mercado e a forma de vida acelerada e stressante dos adultos com quem vivem são, entre outras, realidades que influenciam poderosamente o seu desenvolvimento.

A sociedade manifesta uma atitude hipócrita: vê-se reflectida no espelho que são as crianças e jovens e, às vezes, não gosta do que vê, mas, em vez de analisar as causas, atira contra a imagem que vê projectada. Na escola, isto é especialmente grave. Através dos meios de comunicação, favoreceu-se um alarme social injustificado em relação à conduta dos estudantes. Temas como a falta de respeito para com os docentes, as ameaças entre iguais, a violência escolar, etc., foram desde sempre problemas reais, que sempre existiram, mas que, sendo agora mais frequentes, se sobredimensionaram , convertendo-os em produtos de consumo, através do jornalismo sensacionalista.

Ao lado destes fenómenos, existe uma imensidão de casos de estudantes comprometidos, de jovens interessados pelo meio ambiente, e envolvidos em organizações não governamentais, de crianças conscientes dos problemas referentes à saúde, uso de drogas, etc., que não são suficientemente sublinhados, fomentando-se assim um estereótipo social enviesado e negativo a respeito dos menores. Não podemos esquecer que as crianças e jovens são modelados por toda a sociedade. Demonizá-los é um recurso fácil para iludir a nossa responsabilidade.

Ao mesmo tempo, a indiferença de muitos estudantes em relação à cultura tradicional da escola, oculta noutros tempos devido ao carácter autoritário e repressivo da época franquista, manifesta-se hoje de uma forma mais radical. Esta indiferença, mais do que confirmar que os alunos de hoje “são piores do que os de antes”, como muitas pessoas acreditam, é a evidência mais clara do abismo que separa a sociedade da escola e as questões mais relevantes da actualidade, dos conteúdos e métodos escolares convencionais.

Não é verdade que os docentes tenham um excesso de formação pedagógica e um déficit de formação em conteúdos.

Pelo contrário. Os professores do ensino secundário, por exemplo, depois de cinco anos de formação numa licenciatura centrada em conteúdos (Filosofia, Matemática, História, etc.) só tiveram, na melhor das hipóteses, um curso de dois meses de duração, onde se comprimem aspectos tão importantes para o seu futuro profissional como os seguintes: psicologia das crianças e adolescentes; a importância da dimensão afectiva e social na aprendizagem e na autoestima; os diferentes modelos pedagógicos e didácticos que existem e seus resultados; maneiras de seleccionar e formular os conteúdos; programação das actividades para a aprendizagem de matérias concretas; o uso didáctico dos diferentes tipos de recursos, incluindo os que estejam mais próximos do quotidiano dos estudantes; as formas de avaliar as suas repercussões na formação dos alunos e alunas; as tendências inovadoras na educação; a dinâmica dos grupos humanos e o trabalho cooperativo; o funcionamento das escolas e as relações com as famílias; e as normas legais existentes sobre o sistema educativo.

Mas há mais: numa profissão centrada na prática, os docentes tiveram uma formação muito pouco relacionada com as escolas (seria impensável algo semelhante na formação dos médicos, por exemplo). Além do mais, não o esqueçamos, na universidade, onde se formam os futuros docentes, não é necessária qualquer formação pedagógica ou didáctica para se ser professor.

É de toda a justiça reconhecer aqui o esforço realizado pelos docentes do nosso país, que tentaram dar respostas aos problemas profissionais do seu trabalho, apesar da sua insuficiente formação inicial, pela qual, obviamente, não são responsáveis.

Não é verdade, portanto, que haja um excesso de formação psicopedagógica e didáctica. Somos, nesse aspecto, uma anomalia em relação a muitos outros países. Por isso, consideramos necessária uma profunda e urgente reforma da formação inicial dos professores, que assuma, por fim, que para ensinar não basta saber os conteúdos.

A escola e a universidade necessitam de mudança.
Uma mudança profunda. O fracasso escolar não se manifesta apenas nos que abandonam ou suspendem o seu percurso, mas também nos que o fazem sem ter conseguido uma aprendizagem duradoura e de qualidade.

A mudança que propomos não pode vir do modelo tradicional, como reclamam alguns, ignorando que o dito modelo é responsável pelo fracasso actual. Tão pouco aplicando políticas neoliberais de mercantilização do sistema educativo, como pode observar-se em algumas Comunidades autónomas e em aspectos essenciais da reforma universitária actual, nem transpondo para a escola modelos neotecnológicos e empresariais de planificação e controle de qualidade, como é o caso de incentivos salariais, subordinados ao rendimento académico dos alunos. As pessoas e a sua educação não são mercadorias e o ensino e a aprendizagem não são meros processos técnicos e produtivos.

A mudança terá que vir da recuperação e actualização daquelas ideias e experiências que demonstraram a sua capacidade transformadora. A instituição Libre de Enseñanza, a Escuela Nueva, a Escuela moderna, as Misiones Pedagógicas, os Movimientos de Renovación Pedagógica, etc., são, entre outros, alguns exemplos valiosos do nosso passado. Os contributos de ilustres docentes e investigadores como Giner de los Ríos, Freire, Freinet, Montessori, Rosa Sensat, Piaget, Vygotsky, entre muitos outros, ou de intelectuais de prestígio mundial como Morin, também podem iluminar este processo de mudança.

ALGUNS PRINCÍPIOS ORIENTADORES DA ESCOLA QUE NECESSITAMOS SÃO OS SEGUINTES:

Centrada nos estudantes e no seu desenvolvimento integral (corporal, intelectual, social, prático, emocional e ético).

Com conteúdos básicos relacionados com as problemáticas relevantes do nosso mundo, procurando a qualidade em vez da quantidade, a integração de conteúdos em vez da separação.

Com metodologias investigativas que promovam aprendizagens concretas e funcionais, ao mesmo tempo que desenvolvam capacidades gerais, como a de aprender a aprender. Onde o esforço necessário para aprender faça sentido.

Com recursos didácticos e organizativos modernos e variados. Uma escola que utilize de forma inteligente e crítica os meios tecnológicos desta era.

Com formas de avaliação formativas e participativas que abarquem todos os implicados nas mesmas (estudantes, docentes, escola, famílias e administração), que impulsionem a motivação interna para melhorar e que contemplem as pessoas em todas as suas dimensões.

Com docentes formados e identificados com a sua profissão. Mediadores críticos do conhecimento. Dispostos para o trabalho cooperativo e em rede. Estimulados para a inovação e investigação.

Com um rácio aceitável e co-docência nas aulas práticas. Com tempo para planificar, avaliar, formar-se e investigar.

Com um ambiente acolhedor, onde os tempos, espaços e mobiliário estimulem e respeitem as necessidades e ritmos dos menores.

Co-gestionada com autonomia por toda a comunidade educativa. Comprometida com o meio local e global.

Autenticamente pública e laica. Com um normativo legal mínimo, baseado em grandes finalidades e obtido por um amplo consenso político e social.

Não estamos a propor qualquer despesismo. Há docentes, estudantes, pais e mães que estão a tornar possível esta escola em muitos lugares, mas também entre nós. O que deixa de ser a manutenção do que é tradicional requer vontade política, compromisso social e visão a longo prazo, como ficou demonstrado noutros países. Por isso, contra o ensino tradicional de que padecemos, afirmamos que:
UMA OUTRA ESCOLA É NECESSÁRIA, É POSSÍVEL E JÁ EXISTE.

(O texto original pode ser lido em
http://www.firmasonline.com/1firmas/camp1.asp?C=1821)

2 comentários:

Maria José Vitorino disse...

Obriggada, Helena.
E já agora
muchas gracias
graciès

Helena disse...

É de facto um texto interessante. E quando o li, lá concluí, uma vez mais, que grande parte das questões e problemas da escola pública tem um carácter supranacional. Por isso, logo comecei a traduzi-lo.
Cada vez mais se torna necessário 'pensar global, agir local'...