Arriscar projectos ambiciosos e fazer da escola um espaço de intervenção e cidadania é um esforço meritório e que deve ser valorizado. O professor Jaime Pinho, do Movimento Escola Pública, juntamente com muitos outros professores e alunos, meteram as mãos à obra, e deu nisto:
O livro "Quando a Tróia era do Povo", que recolhe dezenas de testemunhos sobre as vivências populares naquela península nos anos 50, 60 e 70, esgotou três edições em um mês, só na cidade de Setúbal. Para Jaime Pinho e Maria José Simas, que participam no projecto com outros cinco professores e com um colectivo de alunos do 9º ano da Escola Secundária D. João II, em Setúbal, o livro captou a frustração da população da cidade, que se sente excluída face ao empreendimento Tróia Resort, da Sonae Turismo.
"O livro chegou num momento particularmente sentido pela população de Setúbal, que finalmente vê o que aconteceu em Tróia neste último ano", contou Jaime Pinho, professor de História, à agência Lusa, recordando que, em meados do século XX, "o espaço era um autêntico paraíso para a comunidade setubalense e não só, também para a comunidade da região e do país".
"Sobretudo nos anos 50, 60 e 70, Tróia acolhia dezenas de milhar de pessoas que, em grande percentagem, acampavam ali durante os três meses de Verão. Mesmo quando iam para as aulas ou para o trabalho, mantinham as suas tendas e barracas e voltavam para dormir", contou.
Referindo-se à transformação da península pelo projecto Tróia Resort como "uma viragem muito grave" e "brutal", o docente explicou que a população sente "um misto de nostalgia e de revolta" pela "humilhação" que Setúbal está a viver.
Ao verem o livro, há nas pessoas "um brilho nos olhos, o prazer de reverem os tempos que lá passaram e, por outro lado, uma revolta por serem praticamente impedidas de voltar", afirmou, assinalando "uma grande comoção na comunidade setubalense" face a uma mudança que acontece "perante os nossos olhos e a nossa impotência".
"Tróia está aqui mesmo à nossa frente mas, simultaneamente, longe. E as pessoas, agora, só podem ver Tróia por um canudo", declarou à Lusa, descrevendo uma visita recente à praia.
"Na quarta-feira, seis elementos da equipa - dois entrevistados, dois alunos e dois professores - foram a Tróia e o que vimos é triste: uma autêntica cidade mas sem pessoas. Nada da azáfama, da intensidade, das brincadeiras das crianças, do ambiente de libertação e de prazer de outrora", declarou.
Uma impressão partilhada por Maria José Simas, professora de Inglês e Alemão e também participante no livro, publicado com chancela da Escola D. João II a 25 de Maio e que, desde então, esgotou três edições (3.200 exemplares) na cidade de Setúbal, único local onde está à venda.
"Quem é de Setúbal, quem aqui vive, sabe que as filas para Tróia eram imensas. As famílias iam para a praia a pé, com os seus farnéis e sombrinhas", recordou, falando numa mudança de cenário "agora que o cais de desembarque dos 'ferry-boats' foi deslocado para lá da Caldeira e os bilhetes custam dois euros por viagem".
Face a esta alteração com que a população de Setúbal se viu confrontada, a docente diz não estar surpreendida com o sucesso do livro, que esta semana terá a sua quarta edição.
"Frequento os locais populares: vou à mercearia, ando de autocarro e oiço as pessoas. Por isso, sabia que existe, em Setúbal, uma frustração latente em relação ao destino de Tróia. Não sabia é que essa frustração era uma saudade tão sentida e tão comovida", reconheceu.
Maria José Simas espantou-se, contudo, por o livro "transmitir esse sentimento de forma tão vívida" e por pessoas de diversas idades e zonas da cidade utilizarem "um discurso tão próximo para falarem das suas memórias".
De acordo com a professora, o livro "não é uma obra literária" mas "um registo de memórias, de vivências colectivas, comunitárias" e qualquer pessoa pode lê-lo e compreendê-lo.
O projecto de "Quando a Tróia era do Povo" teve início em Setembro de 2008 e decorreu até Maio passado, mobilizando os estudantes para a preparação das entrevistas e a recolha dos testemunhos junto de "avós, tios e vizinhos, que ficaram encantados por poderem partilhar as suas memórias".
Em relação ao nome do livro, a professora assegurou que "não é nenhum recado, apenas dá voz a um sentimento colectivo", tendo sido escolhido pelos alunos entre outras propostas de título colocadas à sua consideração.
Na sua opinião, ao início, as pessoas não estavam contra o Tróia Resort, "mas ficaram desiludidas ao ver a construção em altura, que é um tipo de ocupação do espaço que destrói a sua história", havendo muita gente "que até tem medo de lá ir, tem medo do que vai encontrar".
No âmbito desta iniciativa, os docentes manifestaram-se ainda orgulhosos com o trabalho desenvolvido pelos alunos, "que mostraram ser capazes de produzir algo muito válido para o público", nas palavras de Jaime Pinho.
Por seu lado, Maria José Simas destacou que este tipo de projectos "valoriza o saber e a cultura familiares e devolve aos miúdos um certo orgulho pelas famílias, pelo seu valor documental, mesmo quando são iletradas".
"Quando a Tróia era do Povo" aborda as vivências, divertimentos e convívios em Tróia e detém-se em aspectos como as características do vestuário, as práticas alimentares e de higiene ou as festividades religiosas, traçando uma espécie de quadro sociológico animado por dúzia e meia de fotos da época, algumas provenientes do Arquivo Fotográfico Américo Ribeiro e outras de colecções particulares.
O volume, vendido a cinco euros, é o quarto de uma colecção que integra "A Vida e o Trabalho em Setúbal no Tempo dos Nossos Avós", de 1986, "Mano Preto Mano Branco - Direitos Humanos em Angola e Moçambique (1950-1974)", publicado em 2003, com prefácio do autor angolano Pepetela, e "De Sol a Sol - O Alentejo dos Nossos Avós", lançado em 2006, com prefácio do jovem escritor José Luís Peixoto. Os dois últimos tiveram três edições.
Fonte: Lusa